sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Lenda


         

Em tempos remotos, o homem não sabia escrever, mas sabia contar histórias. Conservava as suas memórias na tradição oral e quando elas falhavam, entrava a imaginação criando, assim, as lendas. Para Câmara Cascudo, “lenda é um episódio heróico ou sentimental com o elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo.”


A palavra lenda vem do latim legere que significa coisas que devem ser lidas ou apenas ler. Sob o ponto de vista da literatura, a lenda apresenta-se como narrativa, em verso ou prosa, geralmente breve, com conteúdo retirado da tradição. É um relato de acontecimentos, em um certo espaço geográfico e em determinado período de tempo, onde o maravilhoso e o imaginário superam o histórico e o verdadeiro. Faz parte da história do homem e sua origem traduz a necessidade do homem em explicar os acontecimentos do mundo.


Para Lúcia Pimentel Góes, “lenda é uma narrativa localizada, individualizada, objeto de fé”. Por apresentar caráter regional, como objeto de resgate folclórico, é conhecida pela sua localização de origem.


As lendas brasileiras, de origem africana, européia e indígena, são diversificadas e mostram acontecimentos de várias partes do país, com personagens como “Saci-Pererê”, “Curupira”, “Mula-Sem-Cabeça”, encontrados na Lenda da mandioca, História de Chico-Rei, Negrinho do Pastoreio.


De maneira geral, tiveram sua origem no anônimo coletivo, onde os homens se reuniam em grupos para contar as aventuras de um mundo incompreendido e suas lutas para dominá-lo. Na opinião de Jesualdo Sosa , “esta é a primeira preocupação com valor científico a surgir no homem, seu primeiro sentimento filosófico”.


Essas vivências foram transmitidas por gerações, sob a forma de lendas, contadas de maneira simples e convincente. Fazem parte da vida da criança, em fase escolar, estudadas nas comemorações do folclore, principalmente, por retratar a imagem do país, através de seus símbolos e personagens.


A lenda não foi classificada como uma forma simples por André Jolles, pois não faz parte do pensamento livre do homem. Está ligada a um lugar determinado, em um tempo distinto e isso afasta a idéia de universalidade.


Apesar de estudada como uma história de tradição oral, não faz parte do elenco das narrativas conhecidas em todo o mundo, pois cada povo tem a sua explicação para suas dúvidas e os heróis que a sua imaginação cria.





Conto popular: maravilhoso


         

Os contos maravilhosos se originaram no Oriente. São muito antigos e eram apreciados pelos adultos. Acabaram por ser incorporados à literatura infantil após as adaptações feitas para as crianças, como conseqüência da “gradativa intelectualização da Cultura”, segundo Nelly Novaes Coelho.


Contém no termo “maravilhoso” a idéia de situações que ocorrem fora da nossa compreensão de espaço e de tempo, cujos fenômenos não obedecem às leis naturais do planeta; possuem características mágicas, sem a presença de fadas, dando ênfase aos aspectos materiais, sensórios e sociais do homem.


Os temas referem-se sempre à satisfação dos desejos do corpo, o enriquecimento e a conquista do poder. Exemplos: Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, A menina dos fósforos, O Gato de Botas, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia, Alice no País das Maravilhas, Chapeuzinho Vermelho, etc.


O grande acervo de contos maravilhosos está reunido na coletânea As Mil e Uma Noites, de origem árabe, cuja forma original surge no século XV, divulgada no mundo europeu a partir do século XVIII.


Tanto os contos de fadas como os contos maravilhosos são importantes para a criança por estarem relacionados com a fantasia. Através das mensagens transmitidas pelas histórias, ela adquire amadurecimento para entender o mundo.


Conto popular: fadas




Na concepção de André Jolles, os contos maravilhosos, de encantamento, de fadas ou fábulas, são simplesmente contos populares, pois eles se referem sempre à moral ingênua do ser humano. É dessa forma que se pretende expor as idéias neste trabalho a partir do termo “conto popular”, pois engloba todas as expressões do homem, mas, para fins de esclarecimento em relação à literatura infantil, vale mostrar as características quanto às suas especificidades. 


Os contos de fadas surgiram na imaginação dos homens e é muito difícil precisar quando e onde ocorreu seu nascimento, apenas que deve ter acontecido há muitos séculos antes da era cristã. Eles continuam sendo transmitidos oralmente por gerações.

Em sentido etimológico, a palavra fada vem de fatum, que significa fado, destino do homem. As fadas são de origem pagã e se utilizam de objetos encantados, por exemplo, a varinha de condão para premiar os escolhidos, realizando os seus desejos. 


Há registros de que a história de Cinderela já tenha sido contada na China, durante o século IX d.C. Até na China essa história teve a sua versão, Yen-Shen, com mais de mil anos, mostrando a valorização dos pés pequenos pelos chineses que os têm como significado da virtude feminina. 


Os contos de fadas atualizam ou reinterpretam, em suas múltiplas questões universais, conflitos de poder e formação de valores, alternando realidade e fantasia. Por tratarem de conteúdos da sabedoria popular, essenciais à condição humana, é que os contos de fadas ganham importância no cenário literário. Nesses contos encontramos temas como o amor, o medo, as agruras de ser criança, as carências afetivas e materiais, as descobertas, as perdas, as buscas, a solidão, a aventura, o encontro e o final feliz, conseguido por intermédio da atuação dos elementos mágicos.


As fadas tornaram-se popularmente conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, dotados de grande beleza, apresentados em forma de mulher. São caracterizadas pelas virtudes e pelos poderes sobrenaturais e seu papel é modificar a vida das pessoas, ajudando-as em situações de extrema urgência, quando nenhuma solução do mundo real é possível.


Em oposição à fada está a bruxa, que retrata a mulher má. É o símbolo da maldade humana. Fada e bruxa são personagens-símbolos, que representam o antagonismo do bem e do mal que, durante toda a narrativa, vão tecendo os destinos dos personagens até a vitória do bem, desfecho importante, que pode alimentar esperanças na felicidade, na justiça.


A bruxa também é, muitas vezes, lembrada pela figura da madrasta, como uma pessoa maldosa que ocupa o lugar da mãe. Na França de Darnton, o cenário é mostrado com base nos fatos reais. Muitas mulheres morriam, precocemente, na hora do parto e os homens viúvos precisavam de companheiras que criassem seus filhos, pois, naquela época, não era tarefa designada para o sexo masculino.


A essência dos contos de fadas expressa os obstáculos ou as provas que precisam ser superados, para que o herói atinja a sua auto-realização existencial, seja pelo encontro do seu “eu”, da princesa que, por sua vez, encarna o ideal almejado. As histórias não tratam de personagens, mas de figuras arquetípicas.


O conteúdo dos contos de fadas enfatiza a questão existencial. Apresentado de forma simples, com texto curto, mostra os personagens de uma maneira estereotipada e exagerada: feios ou belos, maus ou bons, valentes ou covardes e assim por diante. São representados por personagens como rainhas e reis, bruxas e fadas, gigantes e anões. 


Numa linguagem simbólica, os reis e as rainhas podem significar tradição, dignidade, poder, sabedoria; as fadas e os magos, o poder mágico; as bruxas e as feiticeiras, a maldade; as crianças, a inocência e a fragilidade.


A trama dos contos de fadas se desenrola em um ambiente mágico, semelhante a um sonho. São atemporais e não apresentam, também, espaço geográfico determinado. Acontece em qualquer lugar e em qualquer época.


Os contos de fadas, sob a perspectiva de narrativa destinada especialmente à criança, surgem na Europa durante a Idade Moderna, tendo como fontes as histórias registradas na memória dos povos, transmitidas através do tempo pela oralidade.


Na verdade, “o Conto só adotou verdadeiramente o sentido de forma literária determinada no momento em que os irmãos Grimm deram a uma coletânea de narrativas o nome de Kinder-und-Hausmärchen (Contos para Crianças e Famílias). Assim fazendo, contentaram-se em aplicar às narrativas por eles compiladas uma palavra que já vinha sendo usada há muito tempo”, argumenta André Jolles.


Já os Irmãos Grimm afirmam ser Charles Perrault quem fez a primeira coletânea de contos, ainda no século XVII, resgatando a essência do povo através de suas histórias. É ainda Jolles quem insiste sobre o entendimento do termo conto ligado ao resgate das narrativas folclóricas “sublinhemos e conservemos na memória que Jacob Grimm percebeu no Conto um ‘fundo’ que pode manter-se perfeitamente idêntico a si mesmo, até quando é narrado por outras palavras”. Esse “fundo” a que Jolles se refere é a essência que se conserva como formas simples, tomando novos rumos e transformando-se em formas artísticas, produzidas com autoria conhecida.


A maioria dos contos traduz certas similaridades com os ritos iniciáticos dos povos primitivos, em que o homem, para alcançar um outro estágio de vida, submete-se a muitos desafios que possam comprovar o seu amadurecimento pessoal.


Uma prova de que as histórias de fadas surgiram da cultura popular está presente nos personagens principais, que sempre se encontram em um estado de inferioridade no grupo em que vivem e, somente com a presença dos elementos mágicos, conseguem superar as adversidades. Os contos de fadas têm como tema os problemas existenciais ou, segundo André Jolles, “tragédias humanas” e pertenciam à cultura popular como todas as outras formas narrativas orais.


Apesar do final feliz das histórias, fica sempre a sensação de conformismo e de uma certa incapacidade de alterar a sua vida, o seu destino, uma vez que a solução sempre vem através da fantasia, dos elementos mágicos e não do esforço pessoal. Ainda assim, os contos, principalmente os de fadas, representam um contato compreensível com a sociedade. Eles não levam ao questionamento do final feliz. 


Os contos de fadas trazem à tona questões existenciais de provação, de desafio, de sensação de medo, de demonstração da capacidade de lutar e de vencer e isso não tira a credibilidade das possibilidades existenciais humanas como retrato da vida.


Por serem manifestações folclóricas as histórias de tradição oral foram contadas em inúmeras versões, acrescentando-lhes detalhes pelos narradores, dando ênfase aos significados mais importantes. Dentro da caracterização das formas literárias, os contos de fadas são confundidos com os contos maravilhosos. Ambos são contos de encantamento. Todo conto de fadas é um conto maravilhoso, mas este nem sempre é um conto de fadas.

Mito




O mito é a mais antiga das expressões humanas, o modo que o homem encontrou de relatar seus medos, imaginando deuses como força oculta de poder para combatê-los e afastá-los de seus dias. Segundo Nelly Novaes Coelho, “é costume dizer-se que quando o homem sabe, ele cria a história e quando ignora, cria o mito”. Definindo-o como uma forma simples, André Jolles diz que “quando o universo se cria assim para o homem, por pergunta e resposta, tem lugar a Forma a que chamamos Mito” 


Explicar hoje, com o apoio das ciências, os fenômenos naturais parece simples, mas em um tempo em que pouco conhecimento o homem detinha de seu próprio mundo, era uma tarefa para Hércules. Com isso, o mito era o único recurso de que se dispunha para justificar os fatos vividos, mesclados com o seu poder de imaginação.


Através do mito é que o homem pode conhecer a sua própria história, no reconhecimento das questões culturais, religiosas, psicológicas, suas ligações com os seres divinos, os deuses. E por meio de símbolos, o mito proporciona a experiência da evolução humana, privilegiando seus valores, conflitos, mistérios, crenças, verdades eternizadas através dos tempos, presentes em todas as épocas e em todas as civilizações.


Os mitos referem-se a fenômenos inaugurais, como a criação do mundo e do homem, a origem dos deuses e a explicação mágica das forças da natureza. Sua origem explica-se, basicamente, no fato do homem querer compreender a sua existência, seu trabalho e seu destino, assim como a natureza do cosmo.


André Jolles lembra que a “criação do Mundo é vizinha do fim do Mundo”, levando o leitor a conhecer os pólos contrários, que se atraem pelos opostos na criação e na destruição, no início e no fim, fazendo os dois se encontrarem nas infindáveis dúvidas que alimentam a imaginação.


Mito e lenda se confundem dentro de seus conceitos, mas a diferença entre eles refere-se à sua natureza. Através de lendas, relatam-se histórias de acontecimentos heróicos ou do aparecimento de fenômenos, em tempo e espaço determinados. O mito tenta explicar a criação do mundo e do homem, vida e morte, com a existência de deuses, moldando a vida segundo o caráter religioso.


Através das narrativas repetidas inúmeras vezes, pelas vozes dos contadores de histórias, os mitos permanecem vivos na memória das pessoas. “Prometeu”, “Aquiles”, “Orfeu”, entre outros, fazem parte do seu conhecimento.


“Se o mito é uma resposta que contém uma questão prévia, a adivinha é uma pergunta que pede uma resposta”, afirma Jolles. O mito está relacionado à ideia de criação e, portanto, ligado aos deuses, invencíveis na luta contra os perigos, garantindo a certeza da vida. 


Ter conhecimento da própria essência e entender a vida é uma constante preocupação do homem, em suas primeiras compreensões da realidade e do mundo em que vive. Ao encontrar explicações para suas inquietações, o homem começa a contá-las às pessoas em forma de narrativas e, assim, preenche o caminho com histórias.





Memorável




Pode-se definir como modo de se entender um fato, a partir do que a memória do narrador reservou. Jolles busca nas entrelinhas novos dados apresentados conforme se fixaram na pessoa que o relata. Portanto, diz ele, “foi como se também tivéssemos recortado um elemento num quadro de conjunto; de fato, apoderamo-nos de um elemento que se destaca a si mesmo na História e em que um acontecimento histórico se cristalizou, imobilizou e adquiriu forma própria”.


Os memoráveis são histórias resgatadas das pessoas anônimas, desconhecidas da sociedade, que recriam fatos não percebidos por escritores que se incumbem de contar histórias, mas que muitas vezes não as viveram ou, se as conheceram, viram à sua maneira, a partir de sua bagagem cultural.


As histórias contadas com base na memória misturam-se com os fatos reais, recriando outros. Por vezes, o leitor não consegue distinguir o que de fato aconteceu com o que o entrevistado ou o narrador escreveu. Isso dá margem às histórias não oficiais, as orais, que se distanciam das oficiais, as impressas nos livros, consideradas verdadeiras, utilizadas às largas em currículos escolares.






Caso




É a forma simples que, mais tarde, deu origem à novela. Como uma maneira de estabelecer uma pergunta, o caso tenta fornecer as pistas para uma resposta.


Segundo André Jolles, “no Mito, o universo dá-se a conhecer em seus fenômenos por pergunta e resposta, e torna-se a criação a partir da sua natureza. Na Adivinha, a pergunta e a resposta verificam e proclamam a pertença a uma iniciação. No Caso, a forma resulta de um padrão usado para avaliar ações, mas a questão contida em sua realização influi sobre essa norma”.


O caso indica a ação humana, susceptível de avaliação e de ponderação por parte de quem julga, cumprindo a sua função de relatar os acontecimentos, imputando-lhes as conseqüências às causas provocadas.


Um caso para pensar:




Vetãlapañcavimsãtika[1]


Somadeva[2]


Um brâmane tem uma bela filha. Mal saíra ela da infância, apresentam-se três pretendentes à sua mão, todos iguais em nascimento e perfeição. Cada um deles preferia morrer a vê-la casada com qualquer dos rivais. Quanto a seu pai, teme ofender os outros dois pretendentes se a der a um deles; e a filha permanece solteira por algum tempo. 


De súbito, a donzela cai doente e morre. É incinerada e o primeiro pretendente constrói sobre suas cinzas uma cabana onde passa a morar. O segundo reúne-lhe os ossos e leva-os ao Ganges, o rio Sagrado. O terceiro parte em peregrinação pelo mundo todo.


Certa tarde, chega à casa de um brâmane. À mesa está uma criança mal comportada que chora. A mãe enfurece-se e joga a criança ao fogo, onde ela arde sob os olhares apavorados do peregrino. O pai tranqüiliza-o, vai buscar um livro de magia, declama uma fórmula de encantamento e a criança regressa à mesa como antes.


O terceiro pretendente rouba o livro durante a noite, volta ao seu país e ressuscita a donzela. Tendo passado pelo fogo, ela está ainda mais bela e pura.


Os três rivais voltam a disputá-la mas, entre esta disputa e a anterior, quando todos os três eram iguais, ocorreu uma transformação, uma ação: cada um deles realizou, segundo determinada norma, o que acreditava dever fazer como amante e como brâmane. Tem-se que decidir, portanto, quem deva casar com a donzela. 


“E agora, rei, - diz o Vetãla – resolve este debate.” Que deve fazer o rei? Pesa todos os atos, interpreta-os. 


Aquele que devolveu a jovem à vida é seu pai; aquele que lhe levou os ossos até ao Ganges fez o que a tradição indiana manda que os filhos façam aos pais, portanto, é seu filho; enfim, aquele que permaneceu junto dela, que repousou a seu lado, que fielmente a serviu e manteve sua casa junto dela, esse é o seu esposo. 


O rei falou, o cadáver retorna à árvore, tudo pode recomeçar – um novo Caso.


























[1] De origem indiana. Faz parte do Kathãsaritsãgara, que significa oceano torrencial das narrativas. Trata-se de um exemplo de Caso, publicado em Formas simples, de André Jolles, p. 158-159.


[2] Na segunda metade do século XI, reuniu grande número de relatos, com um novo arranjo e intitulou Kathãsaritsãgara.

Legenda




André Jolles define legenda como as histórias de pessoas notáveis, que se imaterializaram, tornaram-se santos, estudadas como “literatura de edificação pessoal” e que, através de trajetórias de vida exemplares, continuam a fazer parte das narrativas contadas por gerações a fio, sem perder a sua expressividade, inclusive reconstruindo o indivíduo “com traços que nos incitam a entrar nele, essa biografia torna-se legenda”.


Afirma André Jolles que “num círculo restrito e estreitamente localizado, vive um homem cuja conduta peculiar atrai as atenções dos que o cercam. Seu modo de vida, sua maneira de ser, distinguem-nos dos outros homens; ele é mais virtuoso que os outros homens e, sobretudo, sua virtude difere ainda mais na qualidade do que na quantidade”. 


O sentido de legendário empregado aos heróis que o mundo notabilizou são aqueles que a história oficial, conhecida nos livros, não atestou, portanto por vezes soando como não verdadeira.